Tapinha não dói, mas o que dizer de 480 páginas de amordaçamentos, chicotadas e safanões?
Tchau, Sabrina e outras coleções água com açúcar vendidas para nutrir fantasias femininas românticas. Literatura cor-de-rosa, agora, tem tons de cinza, versão digital e sexo explícito.
Escrita por uma ex-executiva de TV que virou dona de casa, a trilogia iniciada com "Cinquenta Tons de Cinza" (Intrínseca, R$ 40, R$ 25 em formato digital) engoliu 25% do mercado americano de ficção adulta em três meses. Receita do fenômeno, que chega aqui em 1º de agosto: intermináveis descrições de cenas sadomasoquistas entre uma jovem pura e um homem rico, lindo e controlador.
Por que a mulherada adora essa trama fraca com diálogos inverossímeis, personagens idem e sexo regido por um macho que se excita aplicando na fêmea castigos físicos metódicos, ritualísticos?
"As mulheres sofrem hoje uma crise de excesso de controle. Precisam ter controle sobre a carreira, a casa, os filhos. Natural que a vontade de se submeter ao controle de outro surja como fantasia sexual, sem significar um retorno ao machismo", opina o sociólogo Dario Caldas, do Observatório de Sinais.
"Cinquenta Tons..." parece um "Crepúsculo" para mulheres maduras. Narrado em primeira pessoa pela protagonista Anastasia Steele, o livro é entrecortado por longos e-mails chatos entre o casal e reflexões como "minha deusa interior está dançando a dança dos sete véus".
"Não é a coisa mais bem escrita do mundo, mas acho válido pegá-lo em vez de assistir à novela", diz Mirela Pereira, 28, estudante de nutrição que leu os três volumes em inglês --cerca de 1.400 páginas-- em uma semana e meia. "Não tenho interesse em ser amarrada na cama por um filhinho de papai mandão, isso é apenas algo que achei excitante em uma história", diz.
QUARTO DA DOR
Como todo romance erótico, o livro põe a leitora na situação de "voyeur", com um bônus: há a chance de curtir fantasias sem punições morais no desfecho, explica a historiadora Mary Del Priore.
Para a psicanalista Regina Navarro Lins, o sadomasoquismo ali é um jogo consensual encenado pelos parceiros. Segundo ela, a maior parte dos casais brinca de "Quarto Vermelho da Dor", como é chamado o lugar onde o personagem castiga sua querida. "São brincadeiras de segurar o outro, de beijo roubado, mordidinha. A maior parte responde bem a esses jogos."
As feministas não têm respondido nada bem. É que além de amordaçar Anastasia na cama, Christian Grey controla seus passos e sua dieta, exige que ela o chame de senhor, esteja sempre depilada e pronta para o sexo.
Mas Lola Aronovich, professora de literatura e autora do blog feminista "Escreva, Lola, Escreva", não acha que o livro seja machista: "Se ele faz com que as leitoras alimentem novas fantasias eróticas ou reacendam a vida sexual no casamento, apoio. Pelo menos o orgasmo feminino é frequente na trilogia".
A pedra no sapato não é tanto o feminismo, mas as acusações de que a série é só um plágio picante de "Crepúsculo", aquela saga adolescente criada pela dona de casa mórmon Stephenie Meyer.
Ambas as histórias retratam mulheres comuns e ingênuas fascinadas por homens poderosos e misteriosos.
"A única diferença é o sexo, que Edward [o vampiro de 'Crepúsculo'] não quer fazer e Christian Grey faz o tempo todo. Mas não dá para negar que sejam o mesmo personagem", diz a estudante de medicina Ana Lúcia Soares, 27, leitora das duas séries.
Nos EUA, leitoras dão testemunhos sobre os milagres operados por Christian Grey em seus casamentos. Mas Dario Caldas é cético sobre isso: "O campo da fantasia costuma permanecer isolado da realidade. Em geral, a vida sexual das pessoas é mais em preto e branco do que nos 50 tons de cinza do livro", diz.